Frida Kahlo: o ícone e a obra



O ícone em que se transformou Frida Kahlo (1907-1954) constitui um fenómeno extraordinário que aos poucos se converteu num verdadeiro obstáculo à valorização da própria obra da artista mexicana. Se facilmente reconhecemos nesses trabalhos uma incontornável e intensa dimensão biográfica, talvez até como em nenhuma outra artista do século XX, o certo é que esse processo de leitura tem usurpado à obra uma significação mais profunda do ponto de vista estritamente formal e artístico. 




Claro que, por princípio, nenhuma obra deve ser abordada a partir de uma fractura entre forma e conteúdo. Todavia, neste caso particular, parece-nos útil exigir tal exercício de modo a, por um lado, nos esquivarmos à estafada perspectiva biográfica de observação sobre o seu valor e, por outro, permitir acentuar aquelas que nos parecem ser algumas das suas irresistíveis qualidades, isto é, a independência, o carácter e a idiossincrasia da sua manifestação plástica. 







Por exemplo, se atendermos apenas a uma dimensão estética, concluímos que há por vezes algum pudor em falar de ingenuidade ou naïveté formal quando se evoca a obra Frida Kahlo, como se essa não fosse inclusive uma das suas mais valias essenciais, ou fosse obrigatório enquadrá-la, de algum modo, sob a bitola do experimentalismo formal dominante no paradigma modernista. 





Mesmo considerando o universo figurativo do Surrealismo 




– paralelismo aparentemente imediato apesar da própria Frida ter lutado contra tal catalogação: “Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui.





 Nunca pintei sonhos, só pintei a minha própria realidade” 




– a pintura de Frida Kahlo mantém, como se depreende não apenas destas palavras mas da própria obra, uma forte independência iconográfica, porque apesar de fantasiosa nas suas soluções estéticas, apresenta sempre uma dimensão de realismo vivencial que a afasta de qualquer onirismo poético mais abstracto ou determinado pelos jogos do acaso. 







Com efeito, as raízes formais e imagéticas da obra de Frida Kahlo acham-se conscienciosamente plantadas (metáfora comum a muitos dos seus trabalhos) não só numa sofrida catarse existencial, enquanto projecção essencialmente libertadora, como ainda em referência a uma influente matriz cultural de expressão vernacular, nomeadamente nessa recorrente confluência entre o valor diarístico do registo pictórico e a inscrição de palavras que funcionam como referentes verbais de evocação simultaneamente espiritual e declarativa, como se pode observar, de modos diferentes, em “Auto-retrato de cabelos soltos” (1944) ou “Hospital Henry Ford” (1932), o que remete desde logo para a tradição religiosa dos retábulos e ex-votos, espécie de imagens de rudimentar e ingénua solução formal que no entanto mantêm um forte impacto pela sua dimensão espiritualista.







Diego e Frida forever

 Ainda assim, é conveniente sublinhar que a pintura de Frida Kahlo, apesar de ligada por vezes a opções formais pouco elaboradas 




– derivadas em parte pela dolorosa tarefa física que para si constituía a própria prática pictórica 





– apresenta no entanto vários momentos de grande equilíbrio entre o seu valor formal, iconográfico e memorialista, como em “Auto-retrato com Macaco” (1945) ou “Diego em meu pensamento” (1943), onde se destaca uma sinuosidade linear e envolvente que abraça o seu rosto pleno e verdadeiro como expressão de um agudo sentido acerca do carácter híbrido da natureza humana ou da sua dimensão invariavelmente efémera. Pena é que, apesar da intensa operação de marketing que as rodeou, as obras presentes na mostra do CCB, provenientes do Museu Dolores Olmedo (México), sejam em número insuficiente e percam protagonismo face à predominância do valor de ícone da sua autora. 





David Santos

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